terça-feira, 24 de julho de 2018

Amigo

Toda a manhã era o mesmo ritual: levantar da cama cedo, preparar um sanduíche de queijo e presunto com pão do dia anterior, aquecer no microondas, enrolar num guardanapo de papel cuidadosamente, servir um café com leite com bastante açúcar num copo de plástico e pegar o pote de ração. 

Seu Inácio, um senhor de 70 anos, vivia no Bom Fim, numa das últimas casas centenárias do bairro. Ao redor da casa muitos edifícios. E tudo começou numa manhã invernal, gelada e nebulosa, típica do sul do Brasil. Seu Inácio espiou pela janela e viu um amontoado de papéis bem no portão de entrada da sua casa. Só faltava isso! Os vizinhos colocando lixo ali!

Desceu as escadas abotoando o casaco por cima do pijama e saiu porta afora, sentindo o frio congelar seus ossos e a garoa gelada parecendo furar sua roupa. Ao chegar no portão viu a cena que mudaria sua vida: um rapaz, barbudo, mal cheiroso, dormia encolhido e abraçado num cachorro magro e idoso com pouco pelo. Os dois estavam cobertos de papelão e estavam embaixo da aba do portão para fugir da chuva.

Seu Inácio correu para dentro, catou um dos muitos cobertores que ficaram depois que filhos e netos rarearam suas visitas. Aqueceu um café do dia anterior no microondas e pegou um pedaço generoso de pão, passou manteiga e correu para fora. Chamou o rapaz que acordou de sopetão, meio assustado. Desconfiado, aceitou o café e o pão. Esse último ele dividiu com o cão, que agradecido engoliu seu pedaço numa bocada só. O rapaz já em pé se enrolou no cobertor, pegou a guia do cão e os papelões embaixo do braço e saiu. Virou para trás e grunhiu algo ininteligível. Seu Inácio voltou para dentro de casa.

Depois desse dia, invariavelmente o mesmo rapaz dormia na soleira do portão. Seu Inácio rotineiramente fazia o café, que começou a ficar mais encorpado, com açúcar e leite. Fazia sanduíche e comprou sacos de ração para cães adultos. Servia os dois todo dia no mesmo horário, por volta das 07:30 da manhã. Vizinhos se incomodavam um pouco com os visitantes indigentes mas seu Inácio não se importava. Aquilo lhe dava uma razão para levantar da cama todos os dias. Os dois nunca trocaram mais que duas ou três palavras, mas no olhar do cão e no do rapaz o velho Inácio sentia que eles agradeciam.

Passados vários meses dessa rotina, Seu Inácio se deparou com o portão vazio. Mas havia algo ali. Ele saiu como sempre com tudo preparado e encontrou o velho cão sem guia sentado olhando para cima com seus incríveis olhos castanhos pidões. Abriu cuidadosamente o portão, depositou a ração no chão e ficou esperando o cachorro comer. Assim que acabou, olhou para o Seu Inácio e saiu. O mesmo se repetiu por vários dias sempre no mesmo horário e isso era muito intrigante. O que poderia ter acontecido com aquele jovem? Como o cão continuava vindo tomar seu desjejum todos os dias? Para onde ia quando acabava?

Resolveu esperar o cachorro comer e tomar seu rumo num desses dias e seguiu o animal. Às vezes perdia ele de vista. Não tinha mais a agilidade de outros tempos... e parecia que o bicho o esperava logo adiante até que recobrasse o fôlego. A caminhada foi longa mas Seu Inácio era obstinado e estava disposto a descobrir esse mistério. O dia estava ensolarado e ele não desistiria facilmente. 

Caminharam, caminharam até que para surpresa de Seu Inácio se deparou com os portões do cemitério da Santa Casa. O cão foi entrando e ele foi atrás. Numa cova rasa, reservada para os indigentes e os impossibilitados de pagar um funeral, estava uma cruz com um número ao invés de um nome. O cão deitou sobre a cova e ali ficou com a cabeça sobre as patas dianteiras. Parecia dizer pro seu Inácio que agora os três estavam juntos de novo.

Seu Inácio chorou. Depois acariciou o cão idoso, levantou e foi caminhando vagarosamente na direção da saída. O cachorro ficou ali deitado vendo o velho sair e às vezes olhar para trás com os olhos cheios de lágrimas. Com um nó na garganta Inácio tentou chamar o cão que não fez nenhum movimento. 

Na manhã seguinte o cão lá estava na frente da casa. Comeu sua ração como de costume mas não saiu dali logo que acabou. Seu Inácio chamou e ele entrou no pátio. Tornaram-se inseparáveis. O cão recebeu o apelido de Amigo e foi assim que os dois se tornaram uma pequena família. Semanalmente iam ao cemitério depositar flores para o responsável por essa união.

Ambos viveram juntos por mais cinco anos quando o cão morreu, na frente da lareira numa noite fria, nos braços de Seu Inácio. Inácio faleceu dias depois de um mal súbito.

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